Falar de violência e de trauma é também falar da desmistificação e das transformações que precisam ir acontecendo, para que haja uma maior consciência de que, a causa e consequência da mesma são indubitavelmente faces da mesma moeda.
Precisamos mudar mentalidades, intervenções, acções e até expressões.
Expressões usadas com frequência, inclusive nos meios terapêuticos, para adjetivar pessoas que “escolhem mal” as suas relações, a quem se atribui de forma pejorativa, um “dedo podre”.
Sendo o trauma calado, quem sabe pelo peso que o seu significado foi gerando, o “dedo podre” parece, pois, ser mais bem aceite. Ao longo destes últimos anos de trabalho nesta área, fui reconhecendo a “condenação” que é ser autodiagnosticada com esta “possibilidade”.
Como poderá agir alguém que repetindo padrões traumáticos, acredita existir em si algo “podre”, e no seu corpo uma parte “apodrecida”? Se considerarmos o poder do símbolo no desenvolvimento e consciência humana, e como uma parte importante nos nossos processos de transformação, talvez seja preciso aprofundá-lo, para depois o poder resignificar, pois mais do que partes de nós apodrecidas, há partes de nós feridas, e isto é bem diferente.
Não há “dedos podres”, mas sim trauma e é dele que, com dignidade devemos falar, dando-lhe a voz que merece. As “escolhas” de sair de círculos abusivos, que tantas vezes aos olhos do mundo parecem óbvias e fáceis, nem sempre o são. Nas relações onde impera a violência física e psicológica, até que corpo e consciência se “alinhem” e façam parte integrante do processo, há um caminho que precisa de ser iniciado, para depois ser percorrido. Antes disto, o comportamento disfuncional e violento, tende a ser mais, um resultado de uma ação reflexa, do que propriamente de ação consciente.
É preciso pois, contactar padrões enraizados, completar respostas interrompidas, que aos poucos foram contribuindo para a normalização daquilo que, mesmo sendo tóxico, é familiar, daquilo que num estágio primário de desenvolvimento foi observado, sentido e corporificado pela pessoa, pois apesar do trauma não nos definir, o mesmo pode arquitetar em nós respostas inconscientes capazes de detonar arquivos internos que pensávamos já estarem mortos, dando-lhes de repente vida própria e revelando-nos que há algo que precisa de ser olhado e acolhido em nós.
Esse algo, tal como o lótus que nasce no lodo, tem outro algo contido em si, outro algo para nos ensinar – quem sabe, a certeza da permanência do amor, apesar da impermanência da vida, e a infinita transformação alquímica a que, de uma ou de outra forma, todos somos convidados.
( Cristina Leal in TCC Psicotrauma)